Existem muitas lacunas na galeria dos Prêmios Nobel de Literatura. Muitas vezes, ele é inadequado ou surpreendente. Nunca o seria, no entanto, no caso de Pablo Neruda.
Hoje em dia, fala-se muito no Neruda marxista, engajado, participante. Ajudou a criar um mito que, sob o aspecto criativo, foi extremamente deficitário para muitos seguidores. Pois a grande poesia participante, de fundo político (a de Maiakóvski, de Pound, do mesmo Neruda ou do nosso Carlos Drummond de Andrade) não brota apenas da intenção. Se fosse assim, tornaria a caber a velha indagação "para que poesia?". Não só da vivência, imediata ou espiritual - nasce o essencial: técnica, competência e, obviamente, talento ou invenção. Oresto ficou sendo o resto.
Neruda soube imprimir a sua grandiosa dicção – uma espécie de oratório altamente metafórico - ao engajamento.
É só lembrar:
Generales / traidores: / Mirad mi casa muerta, / mirad Espana rota; / pero de cada casa muerta sa le metal ardiendo / en vez de flores, / pero de cada hueco de Espana / sale Espana / pero de cada nino muerto sale un fusil con ojos / pero de cada crimen nacen balas / que os hallarán un día el sitio / dei corazón.
Dele soube dizer outro poeta, como Aragon: "há em sua poesia essa força que faz cair as muralhas com canções". Ou García Lorca: "a poesia que serve para nutrir esse grão de loucura que todos levamos dentro de nós e que muitos matam a fim de colocar o odioso monóculo do pedantismo livresco, sem o qual é imprudente viver". Enfim, o poeta que lembra Espanha - ponto de partida de sua arte engajada, já era um dos grandes poetas líricos em língua espanhola. Foi influenciado por Walt Whitman e pelo surreali smo, era dotado de retórica e hermetismo, daquelas imagens incisivas e insólitas, típicas da sua língua, lembrando bastante, de Lorca, não só o Cancioneiro Gitano, mas as cosidas e gacelas. O amor como grande tema. Seja lírico, à la Ronsard, neste trecho antológico: "Yo estaré tan lejano que tus manos de cera / ararán el recuerdo de mis minas desnudas / comprenderá que puede nevar en Primavera / y que en la Primavera las nieves son más crudas". Ou quando voa na evocação: "para mi corazón, basta tu pecho / para tener libertad bastan mis alas". Ou erótico - o cantador da "Canción dei Macho y de la Hembra", o que fala assim: "me recibes, como ai viento la vela".
E nada melhor para exprimir a influência do surrealismo, do que neste trecho, aqui traduzido, de Residencia en la Tierra:
Os jovens homossexuais e as pequenas amorosas / E as grandes viúvas que sofrem delirante insônia / E as jovens senhoras, grávidas há trinta horas / E os gatos roucos que cruzam meu jardim em trevas / Como um colar de palpitantes ostras sexuais / Rodeiam minha residência solitária / Como inimigos organizados da minha alma / Como conspiradores em traje de dormir / Que, como sinais, trocam longos beijos espessos.
É preciso impedir que os ventos eventuais abafem a lírica de Neruda, que sempre soube da luta, mas também do "ofício ou arte severa".
Correio da Manhã
26/09/1971